domingo, abril 15, 2018

Quem 'governa' são as facções.

Facções escrevem em muros normas de comportamento para moradores, em João Pessoa...

Na ausência de políticas públicas efetivas, que garantam segurança, saúde e educação, moradores de comunidades e conjuntos habitacionais da Região Metropolitana de João Pessoas têm ficado entregues as regras e condutas do crime organizado. Idosos, jovens e famílias inteiras convivem com o medo diário, que silencia e torna o cotidiano difícil de ser encarado.

É o que acontece no Condomínio Vale das Palmeiras II, no bairro do Cristo Redentor, Zona Sul de João Pessoa. Por lá, mais de 850 famílias convivem diariamente com usuários e vendedores de drogas, pessoas muitas vezes ligadas ao crime organizado, que deixam nos muros das residências recados para que a população adote regras específicas de comportamento.

“Tire os capacete...” é uma dessas pichações encontradas na comunidade, um alerta para que quem entrar no condomínio seja de imediato identificado, correndo o risco de ser morto, caso desrespeite esta regra. Por todo o residencial são encontradas normas e mensagens deste tipo estampadas nos paredões de concreto. “Okaida mata alemão”, “Cabueta é zero boi”, “OKD Cidade de Deus”, além de códigos penais como “157’.

Doutora em Sociologia, a pesquisadora Luziana Ramalho Ribeiro coordena o Grupo de Estudos Sobre Violência, Segurança Pública e Gênero (GEVSP), do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas (NCDH) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Ela explica que o cenário encontrado no Condomínio Vale das Palmeiras II não é único e reflete o histórico afastamento do Estado nas regiões mais vulneráveis da cidade. “O senso comum tem uma frase muito propícia para explicar isso: onde o Estado não chega, o crime organizado chega. Esses grupos criam regras a médio e longo prazo, com intuito de estabelecer os fluxos, distinguir os que fazem parte da comunidade e os que são inimigos”, destacou a pesquisadora, que disse também que essas práticas têm crescido na Capital.

Para ela é difícil projetar como será a força do crime organizado no futuro destas comunidades, mas no presente pouco se tem feito para diminuir seu poder, explica.

Normas se adequam



A professora explica que essas regras e condutas não surgem do nada. Elas são baseadas em práticas de outras comunidades e da própria sociedade. “Os postos de gasolina, por exemplo, hoje impõem que os usuários tirem o capacete ao entrar. As comunidades estão copiando estas regras da sociedade e adequando-as às suas necessidades específicas, que é o controle de trânsito, o fluxo de pessoas e a segurança imediata dos que agem ali”, disse a especialista.

Duas organizações criminosas dominam a Região Metropolitana de João Pessoa: Okaida (OKD) e Estados Unidos, mas a professora destaca que é preciso analisar bem quem são os grupos que tentam exercer poder em determinadas regiões, uma vez que tem crescido a presença de milicianos na cidade, ou seja, pessoas que não fazem parte das principais facções do Estado, mas que têm exercido domínios sobre a população.

“Alguns estudos já apontam a presença de milicianos no entorno da Grande João Pessoa. É preciso apurar até que ponto essas organizações são formadas por civis ditos ‘comuns’, pessoas que entram no mundo da criminalidade, ou se são organizações que partem de instituições da segurança pública, que formam as milícias”, observou a pesquisadora.

População sofre. No meio dessas disputas, está a população comum, trabalhadores, mães e pais de família que tentam viver com dignidade, mas acabam encontrando na ação dos criminosos obstáculos para que possam viver em paz, sobretudo porque muitas comunidades vivem em guerra, explica a doutora em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas, Luziana Ramalho Ribeiro.

“Muitas vezes numa mesma comunidade nós temos facções diferenciadas, isso torna difícil os processos de socialização, os direitos sociais e civis. Nos horrorizamos quando vemos o que acontece no Oriente Médio, na Faixa de Gaza, mas vivemos no Brasil uma situação muito parecida com aquela”, destacou a especialista.

Tudo isto, reforça a professora, é reflexo da ausência de gestão pública eficaz, que, afastando-se da população, deixa as comunidades à mercê da criminalidade. “O que observo é que na relação Estado x Sociedade existe uma lacuna. A regulação do Estado sobre o índice de violência que paira na sociedade tem se mostrado frágil. É preciso que o Estado exerça aquilo que ele foi forjado na modernidade: o uso legítimo da violência, o que não significa dizer arbitrariedade”, disse.

É preciso investir

A pesquisadora defende que, para mudar essa realidade, é preciso uma rede de ações e investimentos públicos. “Não teríamos nessas comunidades esse ordenamento normativo para além do Estado se o Estado estivesse lá efetivamente. Ou seja, se além da força policial fossem garantidos os direitos sociais à educação e saúde. Grande parcela da população vive na exclusão total. As facções se organizam e acabam virando o grande regulador diante deste cenário”.

A especialista reforça que, não basta cobrar e colocar a responsabilidade no combate às facções nas mãos dos policias. É preciso múltiplos investimentos para diminuir a força da criminalidade. “Se violência resolvesse violência não teríamos a continuidade das guerras. É preciso aplicar outras lógicas, que é da valorização da vida, de todo ser humano, inclusive dos profissionais de segurança”, disse Luziana.

Regras fazem surgir novas éticas

A falta de políticas públicas na periferia cria regras impostas pelas facções, condutas e orientações que fazem surgir novas éticas na comunidade. No Condomínio Vale das Palmeiras II, no bairro do Cristo, existe um galpão abandonado, onde seria construído um posto de saúde. No local, ao invés de medicamentos, só há entulhos e pichações, entre elas uma que diz: “Proibido usar drogas na frente das crianças”.

Pichações desse tipo foram encontradas também em outras localidades, como no muro do Cemitério Cristo Redentor, também no bairro do Cristo. Lá, a Okaida escreveu: “Proibido usar droga nesta comunidade” e “Dinheiro para nois é lixo, morador para nois é ouro”.

Para o sociólogo Gonzaga Júnior, professor e pesquisador do curso de Serviço Social da Faculdade Internacional da Paraíba (FPB), as normas impostas pelas facções nas comunidades atendem a uma necessidade humana de organização e logística das relações sociais. Com a ausência do Estado, dita a regra quem impõe poder na comunidade.

“São formas de poder que se instalam no local quando há ausência estatal. A moral e a conduta são inerentes a condição da organização humana. Elas costumam ser formadas pela lei e pelo Estado, mas, quando este se abstém, a própria comunidade ou grupos específicos criam dinâmicas e regras”, explicou o sociólogo.

Uma moradora do Vale das Palmeiras II, que preferiu não se identificar, disse que tem medo das facções que dominam e regulam a região, mas também vê pontos positivos dessa presença.

Essa perspectiva, aponta o sociólogo Gonzaga Júnior, reforça a carência de políticas públicas nestas comunidades.

“Muitas vezes o Estado só aparece na forma de bala, na força, enquanto os grupos de criminosos impõem regras deste tipo, que não pode se usar drogas na frente das crianças. A comunidade sente no que é mais caro para ela e por isso muitas vezes tende a negar a polícia como referencial”, explicou o professor.

Polícia atua ostensivamente nas comunidades

A reportagem procurou a assessoria de imprensa da Secretaria de Estado da Segurança e da Defesa Social (Seds) para saber das ações de combate às facções criminosas dentro das comunidades e habitações populares na Paraíba. Até o fechamento desta edição nada foi atendido.

Sobre a situação do Condomínio Vale das Palmeiras II, a assessoria de imprensa da Polícia Militar do Estado da Paraíba (PMPB) disse que o policiamento ostensivo da área é de responsabilidade do Regimento de Polícia Montada e que a comunidade está inserida em um dos Quadrantes de Polícia Preventiva do setor. Durante a semana, segundo a assessoria, quatro viaturas realizam o policiamento da região, contanto com o apoio de mais uma viatura extra em horários norteados pelas estatísticas. Nos fins de semana, o policiamento chega a contar com até sete viaturas.

Há uma Unidade de Polícia Solidária na comunidade Bela Vista, a qual também atende o Vale das Palmeiras, cuja finalidade principal é tentar desenvolver uma relação de confiança com a comunidade local, o objetivo de identificar quais os principais demandas da comunidade onde a PM pode atuar.